segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Permanecimentos

 


Trespassa o anseio

transgride o desejo

ultrapassa o tempo

estende os espaços



Apropria o sentido e

empoderado um sentimento

Invade as lacunas

Apodera-se de mim

Toma para si a possibilidade de um fim



Inverte o que era errado

perverte quem era certo

Transveste o quão incerto

houveste ao meu lado


Recria uma memória 

concebe outro passado

reinventa uma história 

concede a outro o significado


Do interdito ao seu lado 

do maldito sonho silenciado

os versos que foram calados

e quando mudos, mutados





quinta-feira, 28 de maio de 2020






Sem paciência e sem força
para as utopias de esquerda
ou distopias de direita


Sem ciência
ou formação que interceda
nessas trevas que nos forçam à solidão


A informação do clique
pra quem precisa de uma só palavra
para estar a salvo
de quem sempre tem certeza
mas nunca soube ao certo
qual caminho era o falso


Profetas que anunciam o futuro
de uma história repetida
das misérias em loop
de quem foge de si mesmo
dando tiros no escuro

As palavras escolhidas
para que a verdade não se desnude
no país do futuro
caminhando a passos largos
a esmo por caminhos obscuros

O plano de fuga
a tábua de salvação
as alternativas de luta
para problemas sem solução
Era o "Eu" acima de tudo
e um abismo aos pés da nação




quarta-feira, 25 de março de 2020







Um outro sentido ou lugar
um lado pra escolher
Sem muito espaço para duvidar
o sim é a melhor resposta que se pode ter
sem hipóteses para testar
em mais um sonho a se viver



Um espaço onde o meu é nosso
num caminho só de ida
nesse vício melhor que o ócio
encontro o amor numa rua sem saída



As notas certas para a melodia
as palavras que encaixam no refrão
aquele sorriso que amanhecem os dias
e aquelas propostas que não permitem um não



Você já tinha as respostas
o improviso ensaiado
para qualquer proposta
que me levasse ao seu lado



Seria apenas mais uma de amor
ou mais um sonho acordado
em que desperta o sonhador 
e nada havia mudado

sexta-feira, 8 de novembro de 2019




E há dois mil anos se repetia
na escolha entre o messias e o ladrão
seja por carma e ironia
a voz do povo já dizia: "ele não"


A derrota dos homens bons
na vitória do cidadão de bem
fecham os olhos em silêncio
para aquilo que não convém


Do ideal de um mundo com pessoas plenas
às ideias de Terra plana
Tínhamos no espaço um vazio
a ser explorado pelas pessoas
Temos pessoas vazias exploradas
em um espaço de tempo
mais curto que a trajetória
da bala perdida


Nesses tiros no escuro
que acertam sempre o lado esquerdo do peito
Fogo amigo abortando as sementes
do sonho com outro futuro
Fica o silêncio na gente
interdito o sentimento
e o sentido disso tudo


Reinvento um sorriso
como forma de resistência
ainda que proíbam o amor
não conseguem nos impedir de amar
seja à distância
ou em silêncio
Estamos nessa há mais tempo
do que conseguimos lembrar
Posso até ser só mais um
mas sei que não estou sozinho


Seguem os versos numa página perdida
como um vício em mais uma recaída
Ele é sempre o mesmo,
mas de uma forma diferente
é o mesmo amor florescendo
ainda que (a)o coração esteja ausente








terça-feira, 16 de julho de 2019

Do rio dos caranguejos...





Senti o inverno
o guarda roupa muda
a cerveja gelada cede espaço
ao copo de aguardente
antes do banho frio
Até o sol acorda mais tarde
como se argumentasse
que todos têm os seus
cinco minutos guardados
E o amor nessas horas vale mais
o lar aquece mais que a lareira



Sente,

É inverno aqui
nessa ilha com porto seco
em que o inferno são os outros
Não há mensagens em garrafas,
as palavras são vazias
para quem navega nesse rio 
de pessoas abaixo do nível do mar
que desaguam em um futuro ancorado no passado



Pessoas férteis com ideais estéreis
Cada facista tem sua própria cria
aumentando as marchas e os protestos de apoio
estampando a face dos facínoras
que batizam o nome dos caminhos





Não se ouve a canção do exílio
nem sei se houve alguma canção escrita nesse exílio
aqui a poesia morre à cada passo
da vanguarda reacionária tradicionalista
O passado falacioso é celebrado
talvez porque o futuro já foi esquecido






sexta-feira, 7 de junho de 2019

Vocês não são família, são só mais um grupo de WhatsApp. (Da série: você só tem internet)







“No centro da sala
diante da mesa
no fundo do prato
comida e tristeza
A gente se olha
se toca e se cala
e se desentende no instante em que fala…”
Belchior-Hora do almoço





A fraternidade condicionada e seletiva, os diálogos que se assemelham ao preenchimento de uma ficha cadastral avaliativa de sucesso ou status, os sorrisos diplomáticos  e a celebração por uma porcentagem genética semelhante parecem ser os ingredientes para a concepção dos encontros e das reuniões familiares que mais parecem uma alusão à Guerra Fria em que lados opostos tentam de uma forma além do “passivo-agressivo” demonstrar um maior poderio econômico, social ou qualquer coisa que se sobressaia. 

Da mitologia à literatura evidenciam-se exemplos (quase arquetípicos) de estruturas familiares: Rômulo e Reno, Caim e Abel, Thor e Loki… como se de alguma forma sabedorias em contextos distintos tentassem alertar sobre  a falácia da família unida do comercial de margarina. (Abro um parênteses para que se fosse algo bom seria manteiga e não margarina. Nem mosca pousa em margarina e mosca pousa em tudo.) Parafraseando um amigo jurista, considero plausível a ideia de que uma família só é sincera no momento da herança. Como no dilema do prisioneiro¹, a percepção dos ganhos coletivos superarem os ganhos individuais é facilmente suprimida não sendo incomum encontrar resultados que se afastem do “Óptimo de Pareto”. Encontrar soluções que maximizem os ganhos em jogos cooperativos demandam um pensamento não egoísta do grupo, o que parece distante nesse amontoado de interesses individuais que simulam algo coletivo. O óbvio ganha outras cores dentro de ambientes que carreguem o adjetivo familiar. Avaliações e visões em perspectiva tornam-se mais inverossímeis, como se objeto a ser visto estivesse tão próximo que o observador perde o foco e não consegue vê-lo com clareza.

Outro ponto que me parece na contramão daquilo que poderia ser admirado é o segregacionismo disfarçado de sentimento de pertença. As semelhanças são bem-vindas, quaisquer desvios do padrão serão rechaçados ainda que veladamente. A “ovelha negra” propõe um novo paradigma destoando da perspectiva majoritária e com isso ganha sua passagem só de ida para qualquer lugar que não seja mais aquele espaço. Numa eventual evolução desse processo que flerta com o chauvinismo e o ufanismo fica fácil observar outros vieses de separatismo seja de estados, países ou regiões que estão abaixo geograficamente, mas se consideram acima em das outras partes do país em vários outros aspectos. Longe do meu empirismo ou tentativa de fazer um olhar antropológico, mas não há nada inédito nesse parágrafo, assim como no texto em si como um todo. Não me apetece o sentimento de felicidade em trazer uma ideia possivelmente indigesta para alguns, desconheço o compromisso que algum dia fiz em concordar harmonicamente com tradições embasadas em suposições. No entanto, talvez convenha ratificar a carta de alforria da “moral de rebanho²” e talvez a “ovelha negra” agradeça os generosos convites de retirada dos diversos contextos ilustrados por grupos que ainda não perceberam que são só mais uma janela  aberta com mensagens encaminhadas e não lidas no whatsapp e mais uma vez reitere que a distancia nunca lhes foi tão saudável. 





1 O dilema do prisioneiro faz referência a um problema da teoria dos jogos, sendo um exemplo claro, mas atípico, de um problema de soma não nula. Neste problema, como em muitos outros, supõe-se que cada jogador, de forma independente, quer aumentar ao máximo a sua própria vantagem sem lhe importunar o resultado do outro jogador.
As técnicas de análise da teoria de jogos padrão, como por exemplo determinar o equilíbrio de Nash, podem levar a que cada jogador escolha trair o outro, embora ambos os jogadores obtenham um resultado mais favorável se colaborarem. Infelizmente para os prisioneiros, cada jogador é incentivado individualmente a defraudar o próximo, mesmo após a promessa recíproca de colaboração. Este é o ponto-chave do dilema, ou seja, deverá ou não deverá o prisioneiro egoísta colaborar com o próximo sem o trair, para que a vantagem do grupo, equitativamente distribuída, possa ser maximizada?



Moral de rebanho é um conceito da filosofia de Friedrich Nietzsche que afirma a existência de um comportamento humano puramente submisso e irrefletido sobre os valores dominantes da civilização. São eles ora, aristocrático cavalheiresco, ora cristão ou burguês e se fizeram presentes na grande massa de homens de todos os tempos.
Na moral de rebanho o que move o homem é o hábito, o costume. Adquire-se um modo de ser incorporado, agregado pela civilização, pelas exigências que a sociedade impõe.








segunda-feira, 27 de maio de 2019

Você não é artista, você só tem internet.








“Considerando que cada interpretação de uma mesma obra apresenta, no campo da música popular, suas próprias alturas, durações, intensidades, timbres, densidades, texturas e formas, entendemos que o que é denominado correntemente de “versão” deve ser entendido como um “original” único, uma composição em si.” Sérgio Molina- Música de montagem




A ampliação das perspectivas e dos horizontes estéticos deveria ser algo que invejaríamos daqueles que se aventuram a usar o adjetivo artista. No entanto, em ambientes com ares viciados em que a mesma fala é retroalimentada, como os sons que reverberam em um banheiro, quaisquer produções podem ser distorcidas até o extremo de que o mero fato de se produzir algo seja válido  por si só e isso  leve aos outros o imperativo de admirá-lo. A mesma frase repetida cem vezes viria a se tornar verdade e o a(u)tor talvez esqueça de descer do personagem compartilhando sua narrativa de luta contra os dragões ou os moinhos de vento. Mas o que sempre me intrigou não foi Quixote confundir Tiamat com Drogon, mas sim Sancho dar crédito ao amigo sem nem mencionar a possibilidade de encaminhá-lo ao CAPS mais próximo. Segue o texto e em paralelo uma ideia que me chegou na mesma semana por três vias distintas: a citação do Sérgio Molina em um livro garimpado numa livraria na terrinha e a oportunidade de ter assistido uma performance de uma banda cover do Pink Floyd que executou o “Dark Side of the Moon” na íntegra como direito a todos os sons, samplers, vocais e efeitos que só um fã rogeriano (aquático) demandaria e indiretas por vias de comunicação alternativas  de “pessoas de alma bem pequena, remoendo pequenos problemas querendo sempre aquilo que não tem”. As mesmas músicas de quase 50 anos lidas e relidas de uma forma que só me lembro de um verso de outros textos e de outras músicas “deve haver alguma coisa que ainda te emocione”, porque quando nos faltam as palavras inventamos os poetas (e agradecemos aos deuses pelo Pink Floyd). Nesse interim de divagações de escritas e sons, as sonoridades se renovam e se reinventam à cada novo olhar, leitura ou escuta e me remetem a ideia de que as músicas assim como os fatos não são absolutos em si, mas sim uma pluralidade de interpretações e intenções  em que a única coisa estanque ou imutável seria a nossa ignorância em não perceber que o infinito está ao nosso redor e que nesse processo o superestimado artista é só mais um instrumento para a concepção/execução das canções.








PS- Depois do texto pronto me chegou a ideia de que todas as versões/covers das músicas podem soar como "juntos e shallow now"para alguém e a gente por vaidade ou inocência nem cogita isso quando toca as músicas alheias.


Ps2- Sobre gente que se leva à sério e viram entretainers quando fingem tanto ser bom no que fazem que esquecem que tem gente que já leu aquele roteiro e sabe como o filme acaba... isso ainda me rende um texto... Enfim, o ponto é que o cover mais emblemático de Pink Floyd ainda será o do Falcão em sua releitura de "Another brick in the wall part 2".